Circe é uma figura com múltiplos significados na Odisseia. Um dos aspectos que esta personagem representa é o perigo da feminilidade para a norma patriarcal.
Circe é uma das figuras femininas mais atraentes da Odisseia.
Filha do deus Hélio
e da ninfa Perses, ela faz apenas uma breve aparição na jornada de Odisseu, mas
é cheia de significado. Este personagem serve como um alerta aos homens sobre o
poder da feminilidade e o potencial que as mulheres têm de perturbar a
estrutura da sociedade.
Usando as armas da magia e da sexualidade, ela subjuga os homens à sua vontade. Ela é descrita como consciente do poder que possui. Na Odisseia, Circe é usada como um exemplo negativo de como as mulheres podem se comportar se não forem devidamente controladas.
O Encontro Com Circe: A Odisseia, Livro 10
Logo depois que Odisseu
e sua tripulação conseguiram escapar do canibal lestrigões, eles desembarcaram
na ilha de Ea, Eéa, Eana, Eeia ou Aiaia. Uma equipe de batedores foi enviada
por Odisseu para investigar o local e encontraram um palácio imerso em
vegetação. Circe convida os homens de Odisseu para entrar em sua casa, mas é
uma armadilha. Na verdade, ela lhes oferece uma bebida venenosa e, com uma
varinha, os transforma em porcos. No entanto, Euríloco escapa e avisa Odisseu
sobre o que aconteceu. Após o relato, Odisseu decide resgatar seus homens. A
caminho da casa de Circe, Hermes
intervém e sugere a Odisseu um plano para ter sucesso na sua missão.
Hermes dá ao herói a Móli, uma planta mágica que o protegerá
da magia de Circe. Tudo corre como Hermes prevê: a Móli rebate a magia de
Circe, e quando ela tenta lançar o feitiço com sua varinha, Odisseu continua
sendo um homem. Neste ponto, o herói ameaça Circe com uma espada, e a
feiticeira implora por misericórdia. Neste ponto, Odisseu faz Circe fazer um
juramento: prometer não prejudicar ele e seus homens de forma alguma a partir
daquele momento. A feiticeira aceita e transforma os porcos novamente em
homens. Um ano se passa e, antes de deixá-los ir, Circe aconselha Odisseu a
visitar o Submundo para consultar os mortos sobre seus próximos movimentos.
Circe - A Feiticeira
Circe é a figura de bruxa
mais conhecida da mitologia grega. Muitas das características que seriam
atribuídas à figura da bruxa na literatura posterior já estão presentes na
representação de Circe. É mais correto chamá-la de feiticeira, que tem a
habilidade de encantar. As maneiras pelas quais um encantamento é realizado
variam de acordo com o tipo de magia que a feiticeira usa. Circe é sem dúvida
uma pharmakis, alguém que usa poções
mágicas (pharmakoi) feitas de ervas e
plantas. Consequentemente, um pharmakis
é extremamente conhecedor do mundo natural.
Mesmo antes de sua primeira aparição, Circe está conectada
com a natureza: seu palácio é cercado por uma vegetação exuberante e guardado
por animais selvagens. No entanto, a feiticeira também controla perfeitamente o
mundo natural; ela usa plantas e flores para criar suas poções e doma esses animais
selvagens. A estreita ligação que partilha com o mundo natural reflete a
associação cultural generalizada entre as mulheres e a natureza. Em oposição a
isso, encontramos a equiparação dos homens com a cultura. A principal razão
desta distinção simbólica deriva do corpo da mulher e da sua função de produzir
nova vida.
A Mulher Fatal
A centralidade do corpo está presente nas representações
antigas de mulheres que praticavam magia em relação à luxúria. Circe deseja
Odisseu e faz o juramento porque sabe que é a única maneira de se deitar com
ele. Aqui, Odisseu se encontra em uma situação ainda mais perigosa do que seus
homens: como alerta Hermes, fazer sexo com Circe pode torná-lo mais fraco e
“destripado”. A razão por trás disso reside no fato de Circe inverter as
convenções culturais do homem como parceiro sexual ativo. Com as suas ações,
ela coloca em risco não apenas a masculinidade de Odisseu, mas também os papéis
sexuais normativos de homens e mulheres na cultura clássica.
A personagem Circe na Odisseia permite-nos compreender a
estrutura da sociedade grega em relação aos papéis de género. Em sua aparição
inicial, ela é retratada cantando, tecendo e oferecendo hospitalidade aos
homens de Odisseu. Estas eram atividades que uma mulher e esposa adequadas
deveriam ter.
Ao mesmo tempo, Circe é uma concubina que usa sua
sensualidade para atrair os homens para sua armadilha. Ela transforma os homens
de quem não gosta, ao mesmo tempo que seduz aqueles de quem gosta. Ela tem
consciência de sua capacidade de encantar e usa-a em Odisseu, que perde a
vontade de voltar para casa. Assim, Circe é a amante que tem o poder de fazer o
herói esquecer seu oikos (“família”) e sua esposa. Portanto ela é o protótipo
da femme fatale, uma mulher que tem o poder de catalisar e absorver os desejos
e energias dos homens. Ela consegue convencer Odisseu a ficar com ela em Ea,
oferecendo-lhe uma vida cheia de prazeres.
A Subversão Das Normas de Gênero
Circe desafia a expectativa tradicional de gênero associada
a ser mulher por outro motivo. Ela não tem kurios
("senhor" ou "mestre"), o homem que tem autoridade dentro
de uma família. Em vez disso, ela vive sozinha em Ea com seus animais
domesticados, sem pai, irmão ou cônjuge. Mulheres como ela eram consideradas
irracionais e incapazes de controlar seus impulsos (sexuais) e, com o tempo,
passaram a ser chamadas de “bruxas”. Estas mulheres eram anomalias numa
sociedade baseada no sistema patriarcal. Eram consideradas perigosas porque
invertiam a ordem “natural” onde os homens comandam e as mulheres obedecem.
Circe vive sem autoridade masculina, representando assim uma
ameaça à ordem patriarcal. Mas é preciso notar que, na Odisseia, ela é mais
temida por ser uma mulher livre do que por ser uma feiticeira. Na verdade, sua
experiência com ervas e poções a torna inteligente, e não irracional. No
entanto, a bruxaria de Circe está intrinsecamente ligada à sua feminilidade,
razão pela qual a sua arte é considerada perigosa. A lógica binária que
estruturava a sociedade grega antiga ligava o conceito de feminino à
alteridade. A mulher ameaça a ordem estabelecida que, em vez disso, é colocada
em relação ao conceito de homem. Quando o domínio dos homens está ameaçado, a
ordem social deve ser restaurada.
Portanto, na Odisseia, Circe é derrotada por Odisseu e,
posteriormente, torna-se uma anfitriã generosa e uma mulher adequada. Depois
que Odisseu rebate a posição de Circe graças a Móli, ele a ameaça com uma
espada, na qual Circe se ajoelha e implora por misericórdia. Então, Odisseu
consegue fazer Circe prestar um juramento, alcançando assim o controle moral
sobre ela. Como consequência, Circe desfaz o feitiço que lançou sobre os homens
de Odisseu e finalmente os trata de acordo com as regras de xênia
(“hospitalidade”). Circe é agora uma mulher adequada que segue as regras
sociais de uma senhoria e, como tal, é legítimo que Odisseu tenha intimidade
com ela. Odisseu está tão confortável com esta “nova” Circe que se esquece de Ítaca
até que seus homens lhe dizem que querem ir para casa. Assim, Odisseu pede a
Circe que os deixe partir, e ela concorda sem hesitar.
Circe: A Deusa
Depois que as normas de gênero foram restabelecidas, Circe
não era mais uma ameaça; em vez disso, ela se tornou uma ajudante. Um divino. É
no final deste episódio da Odisseia que a natureza divina de Circe se
manifesta. Circe é uma divindade ctônica, parte da linhagem pré-olímpica de
deuses e deusas chamados Titãs. Como potnia
theron (“Senhora dos Animais”) Circe é caracterizada pela liminaridade por
estar em contato com a Natureza e com sua natureza selvagem.
Além disso, a liminaridade de Circe também está ligada ao
Submundo. Na verdade, a ilha de Ea está situada no Oriente, não muito longe da
entrada do Hades.
Esta posição, bem como a sua natureza divina, é o que permite a Circe ajudar
Odisseu e seus homens em sua próxima jornada. Circe aconselha Odisseu a visitar
o Submundo e consultar os mortos em sua viagem de volta a Ítaca. Ela também
orienta Odisseu nos passos que ele deverá seguir para convocar os mortos. Consequentemente,
Circe não é simplesmente uma ajudante, mas ela é a mistagoga de Odisseu. Nas
antigas religiões de mistério, o mistagogo era a pessoa responsável por
conduzir um iniciado nos rituais secretos de um culto. Como uma deusa em
contato com o Submundo, Circe poderia doar o conhecimento que Odisseu precisava
para prosseguir em sua jornada para casa.
Circe e o Conto de Advertência da Odisseia
O episódio de Circe no Livro 10 da Odisseia é curto, mas
cheio de significado. É sem dúvida uma história de advertência: os homens tomam
cuidado com as mulheres porque elas têm o potencial de subverter a ordem
patriarcal. A personagem Circe resume esses medos: ela é terrível e bonita, e
tem consciência disso. Como tal, Circe usa tanto sua magia quanto sua
sensualidade para inverter os papéis de gênero, tornando-se quem está no
comando.
Circe é apresentada primeiramente como uma feiticeira, que
utiliza seu conhecimento da natureza para dominar os homens de Odisseu. Em
segundo lugar, ela assume o papel de mulher fatal, seduzindo Odisseu e
comprometendo mais uma vez a ordem cultural segundo a qual os homens deveriam
ser o parceiro sexual ativo responsável por um relacionamento. No entanto,
depois que Odisseu faz Circe prestar o juramento, a posição social da
feiticeira torna-se subordinada à do herói. Consequentemente, a norma
patriarcal é finalmente restaurada. A ordem social restabelecida abre para
Circe a possibilidade de revelar sua natureza divina e ajudar Odisseu a
superá-la.
O episódio de Circe, portanto, é um conto moral que alerta
os homens para serem cautelosos quando se trata de mulheres. Mas não precisam
de se preocupar muito porque a ordem social adequada, onde os homens governam
as mulheres, pode ser restaurada.