Os índios kaxináuas explicam de uma maneira realmente curiosa o surgimento da lua.
A história começa com uma caçada à cutia, um roedor das matas. Dois índios haviam acabado de caçá-la e retornavam à oca de um deles.
– Hoje irei apresentá-lo à minha mulher – disse o primeiro. Quando chegaram diante da oca, porém, o solteiro não quis entrar.
– Tenho vergonha de apresentar-me assim – disse ele, todo suado e despenteado.
O dono da casa mandou ele esperar ali fora e retornou em seguida com alguns itens de higiene. O índio tímido deu uma limpada no suor, ajeitou os cabelos e colocou alguns enfeites.
– Pronto, está perfeitamente apresentável – disse o anfitrião, introduzindo o amigo na oca.
O marido ordenou rispidamente à esposa que desse de comer ao amigo.
– Dê-lhe toda comida que houver! Quero que coma até estourar!
A jovem índia trouxe um alguidar repleto de comida. Havia mingau, macaxeira, bananas de todos os tipos, cruas e assadas, inhame, pipoca e um mundo de outras comidas.
O visitante comeu o quanto pôde e depois guardou o resto num farnel para levar para casa.
– Muito obrigado pela acolhida, mas já é tarde e devo partir – disse ele, afinal.
– Vou com você – disse o anfitrião, tomando um facão antes de sair.
– Para que o facão?
– Vou cortar madeira. Estou fazendo uma enxada e preciso de um cabo.
Os dois partiram e, no meio do caminho, o anfitrião desfez todas as gentilezas ao cortar fora a cabeça do outro, sem qualquer explicação.
A cabeça rolou pelo chão, mas o corpo permaneceu em pé, recusando- se a morrer. Enraivecido, o matador caiu de facão sobre o corpo até prostrá-lo sem vida.
Enquanto isso, a cabeça, embora caída sobre o solo, permanecia viva.
– Que está olhando? – rugiu o matador.
A cabeça não disse nada, mas as pálpebras bateram várias vezes.
Diante do que julgou uma afronta, o matador cortou um pedaço de pau com o facão, aguçou-o e enfiou a cabeça na ponta. Depois, colocou o marco macabro bem no meio do caminho e deu no pé.
Logo em seguida surgiu outro índio, também caçador, que tomou um grande susto ao ver aquela cabeça espetada na encruzilhada.
– Quero ver direito o que é isto! – disse ele, indo pé ante pé.
Ao chegar mais perto, viu que a cabeça ainda batia as pálpebras, derramando lágrimas enormes, e seu coração encheu-se de terror.
– Anhangá! – gritou ele, certo de estar diante de uma visagem. Enquanto fugia, porém, deu-se conta de que aquela cabeça pertencia a um membro de sua tribo e foi correndo contar aos restantes.
– Nosso irmão foi morto, e sua cabeça jaz espetada no meio da mata! Ao saberem da notícia, todos da tribo juntaram-se e foram ver o prodígio. Uma multidão de índios cercou a cabeça como se fossem consulentes ávidos de um oráculo das matas. Só que a boca, apesar de bater os lábios, não conseguia emitir uma única palavra.
Então um índio mais destemido arrancou a cabeça do poste e atirou-a num cesto.
– Vamos embora, na aldeia veremos o que se há de fazer! – disse ele, partindo.
Os índios seguiram atrás do valentão do cesto, até que, dados alguns passos, a cabeça varou a parte de baixo do samburá e caiu quicando no chão. Os que vinham atrás começaram a pular, esquivando-se da cabeça como se fosse de fogo, até que ela parou de rolar ao alcançar um barranco.
– Vamos, coloque-a em outro cesto! – disse o líder.
A cabeça foi acomodada e a procissão recomeçou, até o instante em que a cabeça, a poder de dentadas, arrombou a trama do fundo outra vez. Uma nova e frenética dança recomeçou até alguém sugerir que deveriam retornar para enterrar o tronco do índio morto.
– Enterrado o corpo, a cabeça sossega – disse o sabichão.
Quatro índios retornaram e enterraram o corpo. Ao voltarem, porém, para a companhia dos demais, encontraram-nos aos pulos, pois agora a cabeça, além de quicar, queria morder a todos.
– Coloque-a num cesto forrado e leve-a nas costas! – gritou o chefe a um índio parrudo.
O índio fez o que o chefe mandara, e a comitiva retomou a marcha.
De repente, porém, escutou-se um berro agoniado. Todos voltaram-se e viram, estarrecidos, a cabeça ensandecida com os dentes na orelha do índio.
– Socorro, acudam! – guinchava o pobre coitado. Então, o chefe tomou uma decisão realmente sábia.
– Deixem essa cabeça aí mesmo! Ela deve estar amaldiçoada e só irá espalhar malefícios pela aldeia!
Todos concordaram a uma só voz, menos a cabeça, que ao ver-se só e abandonada começou a quicar velozmente atrás deles.
Então, foi um espalhar de índios em todas as direções. Alguns buscaram a salvação ao avistarem um rio de águas revoltas
– Mergulhemos! Cabeça nenhuma sabe nadar!
Todos caíram na água e bracejaram com fúria até alcançarem a outra margem. Estirados na relva, ensopados e sem fôlego, eles relancearam um olhar para a correnteza do rio.
– É ela! – gritou um deles. – Anhangá vem vindo!
E vinha mesmo. Fazendo das orelhas duas nadadeiras, a cabeça avançava velozmente, espalhando água para todos os lados.
Então os índios reuniram o que lhes restava de fôlego e treparam, com a agilidade de onças, num pé de bacupari. Lá do alto eles viram quando a cabeça, após sair da água, sacudindo-se e cuspindo água como um chafariz, começou a rolar sinistramente até a base da árvore.
Naquela árvore havia, agora, mais índios do que frutos dependurados.
– Desçam ou sacudirei esta porcaria até caírem todos! – rugiu a cabeça, adquirindo, subitamente, o dom da fala.
Ao ver que ninguém a obedecia, a cabeça começou a dar marradas no tronco, como um cabrito, enquanto os índios balançavam no alto como folhas num vendaval.
De repente, porém, a cabeça parou, talvez meio tonta com tudo aquilo.
– Antes de descerem, deem-me algumas frutas, pois fiquei com fome!
– gritou ela.
Instantaneamente começaram a chover frutos sobre a cabeça esfomeada. Ela deu algumas dentadas nos frutos, mas cuspiu tudo, enojada.
– Pfúi! Estão verdes! Deem-me os maduros!
Desses, ela gostou. Pena que, ao engoli-los, eles lhe saíam pelo pescoço cortado, sem nunca matar-lhe a fome. Mesmo assim, continuava comendo- os.
Então, um dos índios trepados teve uma boa ideia.
– Joguem longe os frutos! Assim poderemos fugir enquanto ela vai buscá-los!
Os frutos foram arremessados o mais longe possível, e a cabeça saiu rolando para apanhá-los.
– É agora! – gritou o autor da ideia.
Numa só vez, despencaram todos os índios. Nem bem seus pés haviam tocado o solo, puseram-se a correr para a aldeia feito lunáticos. Ao chegarem lá, encerraram-se todos em suas ocas e ficaram esperando o pior, que era a chegada da cabeça maldita.
Todos espiavam por entre as frestas das ocas, até que se escutou, cada vez mais nítido, um tum-tum-tum sinistro crescer de dentro da mata.
– Anhangá! É ela! – gritaram vozes esganiçadas de todos os sexos.
A cabeça finalmente surgiu e foi postar-se no centro da taba. Apenas algumas tochas iluminavam o tétrico cenário, pois naquele tempo ainda não havia luminária alguma nos céus.
– Toleirões! Se não me deixarem entrar em suas ocas vou lançar uma maldição que vai reduzir sua aldeia a cinzas!
O silêncio, porém, permaneceu, e então a cabeça passou a gritar uma mistura incoerente de promessas e ameaças, que só serviu para aterrorizar ainda mais os índios.
– Não me deixarão entrar, então, malditos? Pois saibam que, a partir de hoje, subirei aos céus e me converterei na lua! Minha cabeça será a lua, e meus olhos, as estrelas! Aparecerei em quartos, e quando fizer minha primeira aparição as mulheres sangrarão, e quando estiver completa nos céus os cães e os doidos se porão a uivar para mim!
Neste instante, um urubu desceu dos céus, farfalhando suas asas negras. Depois de enterrar suas unhas aduncas nos cabelos desgrenhados da cabeça, a ave subiu, levando-a consigo.
Todos viram, abandonando suas ocas, quando o urubu gigante depositou a cabeça no alto do céu. Imediatamente ela começou a fosforescer em prateado, e das suas órbitas espocaram milhares de faíscas da mesma cor que, após se espalharem por todos os quadrantes, se converteram em estrelas.
E foi assim que, segundo os kaxináuas, a lua surgiu.
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