Havia, pois, um pescador que de pescador, ultimamente, só tinha o nome, pois não conseguia levar para casa peixe algum. Então, certo dia, obstinando-se em derrotar a maré de azar, ele decidiu permanecer pescando noite adentro, até arrancar qualquer coisa que fosse das águas.
– Daqui só saio com um peixão de encher os olhos! – anunciou ele, lançando o anzol.
O sol se foi, a noite chegou, e nada de peixe, até que, de repente, lá pelas tantas da madrugada, um clarão se fez no mar e uma cantoria de mulher subiu harmoniosa das águas.
Aquilo tinha todo jeito de visagem, e o pescador se encolheu todo, dando quase para se esconder atrás do samburá vazio. Mas a cantoria não cessava, até que uma criatura esplendorosamente bela emergiu das águas e foi acomodar-se numa das pedras, um pouco depois da rebentação.
Bem, se o pescador queria algo de encher os olhos, realmente conseguiu o que queria, pois a criatura era realmente deslumbrante. Da cabeça à cintura ela era mulher, e da cintura para baixo era peixe.
O pescador, que não tinha mulher nem peixe, sentiu-se duplamente recompensado.
– Deus é mesmo maravilhoso! – disse ele, depois de blasfemar a noite toda.
De repente, a mulher-peixe mergulhou e o pescador entrou em pânico.
– Espere, volte...! – gritou ele.
Fez-se o silêncio, até que a cantoria recomeçou, desta vez bem próxima,
a ponto de o pescador ficar meio hipnotizado. Ele entrou no mar, ficando com a água pela cintura, até que a mulher-peixe apareceu bem na sua frente. Com os cabelos molhados e o torso completamente nu, era uma visão de sonho ou de pesadelo deleitoso, o que acharem melhor.
– Quem é você? – balbuciou ele.
– Sou a Mãe-d’Água, e vou ensiná-lo a pescar – disse a sereia tupiniquim.
O pescador apanhou tanto peixe naquela noite que o samburá vergou de peso.
A partir daí, começou um romance entre o pescador e a Mãe-d’Água, que culminou num pedido de casamento.
– Sim, eu quero! – disse ela, donzela ingênua e sedenta dos prazeres do matrimônio.
– Você irá viver comigo? – perguntou o pescador.
– Está bem, vou viver em terra com você – disse ela, cedendo. – Mas imponho uma condição.
O pescador franziu a testa, pois era um tipo truculento.
– Só viverei com você enquanto não desfizer da minha gente do mar. O pescador suspirou aliviado!
– É claro, jamais falarei mal da sua gente! – disse ele, esquecendo-se logo do que prometera.
A partir desse dia, os dois foram viver na cabana do pescador. Quando a Mãe-d’Água chegou ao “ninho de amor”, entretanto, teve de fazer um esforço enorme para esconder a sua decepção.
“Que pobreza!”, pensou ela, ao adentrar o casebre de duas peças.
Um mormaço sufocante pairava ali dentro. Não havia cama nem rede para deitar, só uma esteira atirada no chão batido. A mesa, por sua vez, nada mais era do que uma tábua comprida deitada sobre duas pilhas de tijolos. Dois latões vazios de óleo de cozinha, postos de cada lado da mesa, completavam a mobília.
Mas o que realmente a incomodara fora a mudança no caráter do esposo. Desde a chegada, ela percebera que os modos do galante pescador haviam se alterado radicalmente.
– Deite-se aí! Tem a esteira inteirinha dando sopa ali.
iara aproximou-se cautelosamente da esteira toda desfiada. Quando estava a um passo dela, porém, retrocedeu instintivamente: uma lufada de urina seca explodira nas suas narinas rosadas como uma bofetada.
– Água e sabão têm por aí, peixinha. Trate de limpar a casa.
A Mãe-d’Água virou-se para o esposo, mas ele já saíra. E foi assim que começou o seu martírio terrestre.
O tempo passou, e o marido da sereia foi ficando cada vez mais grosseiro. já no segundo dia, o tratamento afetuoso mudou. O dia inteiro era um tal de “faça isso!” ou “faça aquilo!” que dava engulhos na pobre moça.
Dia após dia, a Mãe-d’Água, obrigada a viver naquela maloca junto com um homem tão grosseiro, foi perdendo todo o encanto pelo casamento.
– Então, é isto viver em terra? – dizia de si para si.
– O que está reclamando, agora? – perguntou o marido.
Ela desvencilhou-se, enojada, mas ele agarrou-a brutalmente.
– Escute aqui! Comigo não tem choradeira – disse ele.
“Onde está aquele pescador ingênuo e adorável?”, pensou ela.
Então, ela decidiu que, quem sabe tornando o marido rico, pudesse torná-lo novamente gentil. Graças aos seus dons mágicos, as bênçãos começaram a chover sobre o casal, e logo eles estavam morando num palácio à beira- mar. Pena que ela tivesse de limpar sozinha todos os trezentos aposentos.
– Não vou pagar criada alguma tendo uma mulher em casa! – disse o pescador, com modos ainda piores do que os do tempo da penúria.
Então ela desesperou-se de tudo e, a partir daí, não fez mais outra coisa na vida senão postar-se, dia e noite, no janelão do palácio que dava para o mar e entoar seus cânticos aquáticos de saudade.
infelizmente, as suas árias delicadas e pungentes só conseguiam irritar ainda mais o marido.
Um dia, finalmente, ela decidiu voltar para casa, custasse o que custasse.
A Mãe-d’Água sofreu muito nas mãos do marido ao comunicar o seu desejo, mas, perdendo todo o medo, resolveu enfrentá-lo.
– Não suporto mais esta vida em terra! Quero voltar para junto dos meus!
– O que quer junto dos peixes malditos?
Neste instante, um alívio abençoado desceu sobre a Mãe-d’Água. Ela estava finalmente liberta, pois o miserável acabara de maldizer os seus parentes do mar!
De repente, o céu ficou negro e uma onda medonha começou a formar-se na linha do horizonte. O pescador arregalou os olhos ao ver a massa d’água avançar na direção do palácio e, abandonando a esposa, correu como um alucinado para o morro mais alto.
As águas invadiram tudo, cobrindo o palácio dourado até o topo, e quando refluíram para dentro do mar arrastaram consigo a jovem sereia e o palácio inteiro, até a sua última pedra.
E foi assim que a Mãe-d’Água voltou a morar nos seus adorados domínios, enquanto o pescador voltou a ser um pobre-diabo azarado e solitário. Nunca mais conseguiu tirar coisa alguma do mar, nem mesmo as tatuíras da areia, que lhe escorriam ágeis pelos dedos, sem jamais deixarem-se agarrar.